Desconstruindo conceitos: o outro lado das torcidas organizadas
- Podium
- 30 de nov. de 2018
- 5 min de leitura
Uma entrevista com Esequias Pierre, historiador formado pela UNICAP, para desconstruir conceitos em relação as torcidas organizadas. Esequias é torcedor assíduo do Santa Cruz, responsável pela sala de troféus do clube, e especialista quando o assunto é as organizadas e sua relação com os movimentos sociais.

Autor(a): João Rêgo e Gustavo Henrique
Podium - O atual senador eleito pelo estado de São Paulo, Major Olímpio (braço direito de Bolsonaro e do mesmo partido do atual presidente) é o autor do projeto de Lei 1587/2015 que pretende extinguir as torcidas organizadas. Em entrevista à Folha de São Paulo, ele afirmou “As torcidas organizadas se tornaram organizações criminosas que colocaram os clubes e os torcedores como reféns. São fachadas para o crime. Quando se fala em organizadas, se remete diretamente a confusões , brigas , mortes e danos ao patrimônio público/privado em decorrência dos confrontos entre torcidas rivais”. O que você acha dessa declaração?
Esequias - É uma declaração rasa e perigosa, baseada, em geral, no senso comum e numa visão de quem pouco conhece o universo das torcidas organizadas, das organizações que estão no futebol e, principalmente, da dinâmica deste segmento. É importante inclusive observar que esse tipo de declaração, geralmente, é dada por quem não tem experiência no meio. É uma visão parcial que generaliza todos os problemas. Não se pode afirmar que a violência está presente em todo tipo de torcidas organizadas e que elas se configuram como organizações criminosas, quando temos uma variedade de tipos de torcidas politizadas, como coletivos de mulheres, torcidas antifascistas e várias outras.
Podium – Então há um certo preconceito com as torcidas organizadas e sua relação com a violência nos estádios por parte de quem opina sobre o tema?
Esequias – Sim, muito. A violência está na sociedade e se reproduz com muita clareza, por exemplo, na condução das policias militares e o tratamento que ela dá aos torcedores nos jogos. A violência também está no preço altíssimo dos ingressos, nos horários dos jogos comandados por uma lógica capitalista de audiência da TV, na elitização das arquibancadas, na criminalização das festas e, principalmente, nas proibições excessivas. Quem depreda, mata e tem envolvimento com a criminalidade deve ser identificado e punido individualmente, e não punir a coletividade que são as torcidas organizadas. Na realidade mesmo, acho que esse desconhecimento e preconceito em relação a um tema é muito intencional. Com as torcidas organizadas como o bode expiatório e culpadas por toda a violência nos estádios, não enxergamos a falta de uma política de segurança efetiva.
Podium – Qual argumento podemos trazer à tona em um debate com pessoas que enxergam com preconceito as organizadas?
Esequias – Buscar levantar a complexidade que o tema exige, e questionar a visão que se consolidou na grande mídia. Questionar também os números oficiais que sempre são analisados corretamente. Por exemplo, em outros tempos foi proibido o consumo de bebida alcóolica nos estádios, já que era uma das causas apontadas como razões da violência. Já se passaram passamos quase 10 anos com essa medida, a violência, efetivamente, diminuiu nesse período? Aqui em Pernambuco as organizadas estão banidas há anos, e os casos de violência não reduziram. Por que isso? Os encontros e brigas acontecem longe dos estádios por razões mais diversas que envolvem questões muito além do futebol.
Podium – A torcida organizada também atua no campo do social?
Esequias - Certamente. Como as organizadas surgiram para democratizar a festa dos torcedores, elas terminam trazendo e fomentando um sentimento de pertencimento a pessoas que não se sentem representadas por uma parte mais ‘’abastada’’ da torcida. Em relação ao prático, as organizadas estão sempre realizando ações sociais com moradores de rua, crianças, asilos, sempre estampando o nome do clube e do futebol como ferramenta de transformação e, claro, de acolhimento.
Podium – Como você disse, há uma variedade de torcidas organizadas e pautas dentro delas. Pode falar um pouco das que você participa e quais são as pautas?
Esequias - Hoje eu faço parte de alguns coletivos que possuem outras disputas para além da arquibancada. Grupos como Coletivo Democracia SantaCruzense, Movimento Popular Coral e Coral Antifa traçam disputas muitas vezes que os aproximam para além do apoio ao clube. São tentativas de consolidar pautas como democracia interna, mecanismos de transparência e uma maior participação popular no dia a dia do time. Buscamos defender a manutenção de uma política de ingressos permanente, além da transparência no quadro associativo e nas instâncias de deliberação como conselho deliberativo e a assembleia geral dos sócios. No geral, indo contra essa onda de eletização que assola o futebol brasileiro. Por isso, entendemos que não lidamos com algo micro, mas sim com uma totalidade de coisas. É assim que nos reconhecemos não apenas como torcida organizadas, mas também como movimento social.
Podium – Você falou de coletivos femininos nas torcidas. No Santa Cruz, time que você torce e possui maior aproximação, há torcidas exclusivamente femininas?
Esequias - Embora a pergunta se refira a torcidas exclusivas femininas, acho importante fazer um recorte para os núcleos femininos das torcidas organizadas que já existem, algumas delas com quase 30 anos de existência. É importante destacar, porque mesmo mais ou menos politizadas, esses grupos deram, e dão, uma contribuição enorme para a democratização do espaço das mulheres nas arquibancadas. Hoje o Santa Cruz tem, além dos núcleos femininos nas organizadas, movimentos e grupos que trabalham com pautas feministas, em especial o Movimento Coralinas - que lutam e possuem como principal objetivo o empoderamento feminino no futebol e a luta contra o machismo dentro e fora de campo. Tem também o grupo Fechadas, que combate a misoginia e os preconceitos nas arquibancadas do Arruda, além de promover ações internas junto ao clube. Além do Santa, em Recife, o Sport e o Náutico também possuem grupos como esses, e igualmente politizados, como as Leoas da Fuzarca e as Timbuzeiras.
Podium – Além das mulheres, os LGBTs também sofrem bastante preconceito nas arquibancadas. Existem torcidas organizadas LGBTs nos clubes daqui?
Esequias - Essa discussão é uma das grandes barreiras a serem superadas no futebol. Há muitos anos já existiam grupos de LGBTs torcedores. Atualmente, eles possuem uma organização melhor dentro de torcidas que têm como bandeira o antifascismo, o movimento das mulheres e alguns coletivos mais politizados. Mas no geral, as torcidas organizadas e os próprios clubes foram edificados em uma estrutura que, diversas vezes, reproduz o machismo, a homofobia, a misoginia e o preconceito de cor e classe. Aqui em Pernambuco não conheço organizadas LGBTs, mas no Brasil inteiro existem diversos casos. Por exemplo, a histórica Coligay que foi fundada em 1977 que era formada majoritariamente por LGBTs. Tem também grupos mais recentes como a Galo Queer, do Atlético Mineiro e a Palmeiras Livre que traz um forte discurso anti-homofóbico. No cenário internacional existem também diversas iniciativas em clubes como o St. Pauli da Alemanha, Everton, Arsenal, Norwich, Manchester City, Totteham na Inglaterra, e na Espanha tem o Rayo Vallecano.
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